Na pálida manhã, converso com a alvorada, caminho com o olhar sobre o Rio Amazonas que me cerca, sempre calmo, brilhante, com subcamadas de beleza e, às vezes, triste, seguindo o vento para direções bravias. Ventos estes que balançam meus cabelos, que tocam minha pele e refrigeram minha alma. A alma de poeta morre e revive nas paragens diminutas, e eu, cansado de tanto existir, realmente vivo nas nuances desse sentimento tão enigmático.

Um pequeno pedaço de folha de papel em meu bolso, coloco-lhe num banco pequeno. Como que num tinteiro de sangue, o papel um pouco borrado esboça os versos que criei, um tanto filosófico, um tanto reflexivo, um tanto irracional. Dentre tantas palavras que denotam esse momento, surgem pequenos rabiscos, nascem palavras colhidas de maneira pensada, de maneira sentida, de maneira angustiada:

Inspiro-me

Inspiro-me na madrugada,
Nos pálidos tons do inverno,
Nos enfáticos trilhos sem morada
Que já não veem brilho na estrada,
Que já não avistam o deserto.

Inspiro-me nas vastas manhãs
Onde perfumo o passo triste
Nas camadas da ilusória e afã
Aurora que me vem à cortesã
Ferida que nem sequer existe.

Inspiro-me em cada verso,
Do incolor ao que vejo,
Quer seja no incauto universo,
Quer seja no caule disperso
Da árvore que frutifica o desejo.

Inspiro-me, contudo, no fim,
No hoje, no agora, no nada;
E tendo toda armadilha em mim
Do que sequer desconheço assim
Desta selva que se vê na encruzilhada.

E neste dia que enfrento
A mim mesmo
Não sei se me desfaço
Ou se ainda me reconheço,
Ou se ainda hei de ser
Aquilo que mais desejo.

Hei de contar às estrelas,
Às constelações tardias
Que ainda estou cansado
Destas rubras tardes
Onde há ferrugem no espaço
A inquietar minha melodia.

Indigesto diante das sombras
Atormentado pelo vale
Do silêncio que me mata,
Da ode dos prantos inermes
Difusos na angustiosa madrugada
Que me possui na mais tenra miragem.

Palavras inaudíveis de tristeza
Refletem minha amargura
Que anda mais que nunca
Em constante frieza,
Inacreditavelmente escura.

Gestos infames de desejo,
Versos acorrentados no sonho
E entregues ao plano da alma
Inexorável em infiel beleza,
Incompreensivelmente calma.

E assim começam meus dias
Na cinza rubra e destroçada
Pela impiedosa mente
Ferida pela encruzilhada
Que chega de repente.

Inspiro-me na madrugada,
Nos pálidos tons do inverno,
Nos enfáticos trilhos sem morada
Que já não veem brilho na estrada,
Que já não avistam o deserto.

 
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