As aves vagueiam pelo pútrido ar lentamente
E o pobre homem, com o cigarro apagado,
Olha para a névoa do bar obscuro e vazio;
Um velho amigo o olhava quase perplexo,
Quase a banhar-se em seu outro desvario:
“Por que não põe a proteção em teu rosto?”
Disse em tom ameaçador, quase a chorar,
Sem nem ao menos perceber que seu rosto já
Não existia mais como nos tempos antigos.

O dia não parecia clarear, as pessoas andavam
Quase sem alma, sem sentido, sem emoção…
Movimentos computadorizados, medrosos;
Parecia que não podiam desabafar, e um
Simples aperto de mão parecia de outro mundo
Junto com as vozes mudas e carcomidas, sem
Expectativa, sem horizonte; bastava o choro
Das crianças, o grito dos pássaros, o tom árido
Das rochas frias a sombrear a rua sem vida.

O filho chamava por vezes seu amado pai,
Mas o pai já não existia, banhado da secura
Da fome extrema e desgraça que abatera
Os seres mais inexistentes a olho nu;
As avenidas, antes cheias de cor e de luz,
Agora denotam a cinza, e as portas fechadas
Já apresentam a ferrugem que já não se vê;
E nas crateras do chão, a melancolia espera.

A moça olha seu retrato raquítico ao espelho,
Aparentemente com idade avançada, no fim,
Na aurora do que deveria ser a doce juventude;
E a lágrima cai de seus olhos que não brilham,
Ao pensamento o amor, a lembrança amiúde
Que perdeu-se na viagem que não se fez,
No trilho do trem que foi a outra realidade,
A que menos dói na pálpebra dos olhos.

Ao cais, os barcos inundados na tristeza,
O marinheiro a bordo, semissubmerso,
Talvez no sangue de seus companheiros;
Talvez morto pelas ondas que o arremessaram,
Talvez alegre por ter sentido algo além
Da dor que lhe corroía o peito, além da cirrose,
Além da fumaça do cigarro de fogo…

Ao lado, um grande galpão industrial,
Três jovens sujos, imundos, com o corpo
Da mãe estirado no chão: “Mãe, acorde!
Tudo vai ficar bem, eu cuido da senhora!”
Um gritava, quase rasgando a garganta;
“Oh! Filho amado, não irei resistir,
Não aguento vê-los sofrer.
Cuide de seu Irmão como a própria morte a persistir”.

E o intenso som de funeral revestia
Com o som das metralhadoras dos soldados;
A tempo me escondi debaixo de um corpo,
E agora as máscaras que cobriam os rostos
Espalhavam o vírus de paz em seus corações;
Uma velha senhora agonizava ao meu lado…
“O que fiz pra merecer isso?” suas últimas
E diminutas, e gradativas palavras.

Um som ambiente entoava uma voz,
Era hora de voltar para a miserável casa.
O corpo tremendo, os olhos saltantes,
A focinheira no rosto em instantes;
As carroças antigas, os homens de vermelho
Patrulhavam tudo, patrulhavam todos…

“Para onde vais, seu verme?” um deles
Perguntou; eu, com a resposta na ponta
Da língua quase os mandando para o “reino”,
Contive-me em dizer que iria para o lindo
Lar, quando na verdade até o esgoto, junto
Com os ratos, as baratas, os morcegos,
As doenças, seriam um lugar e companhia
Melhores que minha própria casa desgraçada.

Ao menos no bolso tinha um diário,
O diário de um poeta, a fortaleza da liberdade,
As inquietações malucas de um homem,
Com seus desejos ardentes, com vontades
Transcendentes, com sorrisos e amarguras
Expostas na vitrine do papel, no nada;
E como a mente desvairada no céu,
Expunha versos empilhados de memória,
Dias sangrentos de grandioso réu.

Ao passar pelo detector de verdade,
A focinheira apertava meu peito,
E o bipe com loucura apitava
Com as lamúrias de fim de mundo;
O diário jogado ao chão, escondido,
Arremessado ao banheiro sujo.

E eu, com o rosto jovem e acabado,
Sorria para a câmera e acenava ao senhor
Com a satisfação da morte passada no
Pescoço, com os versos engatados nos dedos
E com cheiro de mijo espalhado pela sala;
Assim, em tom ambiente, as suadas mãos
Abriam lentamente o caderno pequeno,
O caderno poético de melancolia momentânea.

Uma gritaria intensa reverberou na noite,
Os gatos acasalavam sem medo da felicidade;
Pondo a mão sobre o peito, lembrei da aurora,
Lembrei de quando a madrugada fria
Trazia inspiração de verdade, quando aos
Lábios da bela moça podia arrancar desejos;
Quando, ao término da noite, podia suspirar…

Na última passagem das folhas áureas,
Transportei-me a um tempo menos sombrio.
Embora a cinza continue a vagar no espaço,
Embora o escopo do tempo não se firme,
Os pássaros pareciam cantar, as pessoas
Pareciam sorrir, o cachorro parecia abraçar
Seu dono, em vez de servir como alimento…

Um brilho intenso parecia vir do sino a badalar
E os cabelos das meninas pareciam balancear
Com o ritmo do vento; os meninos pareciam
Enxergar o próprio reflexo nas águas, assim
Como andavam pelas ruas reunidos a vaguear;
As mães seguravam os filhos nos braços,
E os abraçava como se não houvesse amanhã.

Nesse momento meu peito se estonteou,
Parecia que já havia vivido aquilo antes,
Sem aquela focinheira doentia, sem a
Hipocrisia que faliu todos os comércios.
Aliás, as luzes das lojas pareciam brilhar,
As crateras pareciam ter sumido…

E assim eu olhava para os rios…
E assim recuperava as amizades perdidas;
O cigarro parecia acender, a bebida parecia
Espumar, o tempo parecia não passar,
Pois parecia estático, eterno, com vida.

Mas… mais um dia inerme amanheceu,
Mais uma par de horas sem liberdade…
A porta batera forte, com fuzil nas mãos,
O soldado vermelho me apontava a arma:
“Cadê sua focinheira, seu animal?”
Era hora de tomar a vacina, não passava!

Foi desse jeito que conseguiram poder,
As pessoas têm medo, precisam acreditar
Que há alguém que as esteja salvando,
Até o alimento eles dão, uns farelos de porco
No chão das calçadas; que desgosto das almas
Servis que deixaram tudo chegar a esse ponto;
Que raiva dessas míseras mentes, que querem
A tirania em nome da cura de algo invisível.

Saindo à rua, uma multidão numa fila,
A maioria balançava um sino, a maioria
Nem sequer conseguia ficar em pé.
“Venham, seus vermes” diziam eles
Ao jogar os farelos. Então aquele bando
De bicho atacava, alguém sempre morria
Quando chegava perto de algum deus…

Eles tinham um sistema mútuo de gado,
Muitos tentaram fugir, mas alguém contava;
Foi nesse momento, explodindo por dentro,
Que vi uma linda mulher de quatro no meio
Da multidão que ali comia igual bicho;
Fiquei estático com sua pele branca
E com seus olhos azuis que se destacavam.

Quando todos se distraíram com as luzes
Escondi-me num canto e fiquei parado;
O coração estático, um desejo de adolescente…
Mas me contive e corri para o cais…
Distante, algum barco parecia ancorar-se
Sobre a bruma que no horizonte fazia.

Ao longe, a vista se esbranquiçou,
O sangue desceu de minha boca desfalecida;
Caindo ao chão, vi no meio da multidão
Aquela bela moça com os olhos a lacrimejar…
E o guarda vermelho, com seu fuzil vermelho,
Com sua bala vermelha, com o grito vermelho
Afundou meu crânio e tirou a única chance
Que eu tinha de amar e ser amado…

E o último poema que casualmente restou
Representava o banho de sangue no chão,
A focinheira cobrindo meu rosto inexpressivo,
A lágrima da moça que eu nem conhecia,
Os últimos batimentos de poesia no diário…
E essa última mensagem que gravei na alma.

Itacoatiara-AM, 24 de dezembro de 2020.

 
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