Capítulo V

Corra para bem longe daqui,
Minhas vestes se evaporarão,
Diante da madrugada fria e escura
Estarás acorrentado sobre a escuridão.

Era uma estrofe meio emblemática, José não gostava muito de escrever, mas do nada algo disse em seus ouvidos para escrever isto, e inconscientemente fora feito. Os olhos de Mariana estavam arregalados, quando as luzes se apagaram e passos puderam ser percebidos, alguém estava correndo em direção ao quarto de José.
Os passos ficavam cada vez mais intensos, sombras surgiam de todos os cantos, ultrapassaram as paredes e formaram o corpo de um homem muito alto que usava uma capa preta, não tinha olhos, e tinha uma voz muito grave que de vez em quando, passava a rir tenebrosamente.
Os irmãos tentaram fugir da casa, Mariana estava aos gritos, com muito medo e as portas estavam trancadas; de repente as luzes se acenderam e os pais correram desesperados à procura do problema, lá estavam os irmãos caídos sobre o chão, desalmados e em transe, só parecia ser um pesadelo.
O senhor Estevão colocou-os na cama novamente, e pareciam dormir astuciosamente, como que fingindo o sono, mas estavam desmaiados. A madrugada veio perpetrar com sua falange abissal a melancolia da noite com a solidão do espaço, pareceme que pairada no ar estava a Sonata Pathetique Nº 08, de Beethoven.
Havia uma floresta perdida no obscuro do oceano, e o luar estava sendo visto no espaço entre o galho das árvores. De repente, José viu que um homem estava sentado, chorando profundamente e escrevendo algo que podia ser reverberado em ecos tristes, apenas alguns versos puderam ser notados:

Devasto-me neste engodo dolorido,
Prisioneiro de meus sonhos profundos;
Procurando algo além do que vejo,
Não há certeza, apenas um viver confuso.

Acorrentado nas sombras do medo,
A tristeza cobre-me a pele,
Sem sentido, uma história sem enredo; Não há futuro, a agonia me persegue.

Seus olhos eram o reflexo da prisão, José refletiu sobre seu destino; não havia o que fazer diante da situação, as cinzas do poeta lhe atravessavam os olhos, e podia-se ser visto o passado triste de uma vítima, podia-se ser visto seu corpo sendo consumido pela tempestade, podia-se ver a agonia quando a morte veio lhe buscar. O sangue, como de costume, era mais comum que o vento.
Outras imagens podiam ser vistas, e um contraste vermelho era posto na lápide com uma mensagem: você será derrotado. O mesmo homem que apareceu para José enquanto estava sentado contemplando o lago perto de sua casa, o mesmo homem que apareceu enquanto olhava na janela, e em tantos outros momentos (como na casa) era Anton Satanis, sua história passou pela mente.
Anton nasceu na Inglaterra em 1598 e morreu em 1685, não se tem informação sobre o local de seu nascimento nem o de sua morte, mas sabe-se que iniciou no ocultismo aos 15 anos, com influência de Amadeus Asteri, um romano-germânico que escreveu A peça da morte, livro que o influenciou a criar sua doutrina anticristã e antieuropeia; eles eram especialistas em números e símbolos.
Aos 20 anos, Anton entrou para a ordem secreta dos revolucionários e fazia diversos rituais, e com o passar do tempo conseguiu o mais alto grau da irmandade, o trigésimo nono grau, grau este que dava ao componente o poder suficiente para fazer qualquer coisa, inclusive no âmbito político.
Os anos se passaram e os escritos de Anton influenciaram Mao Tsung Yin, um soldado Chinês e Vladimir Ivanov, um recém-iniciado na ordem dos revolucionários; Taishi Honma, um ditador japonês também se conectou com as ideias por meio de uma reunião que teve na ordem dos revolucionários, Anton conversaria com Mao, Vladimir e Taishi sobre o futuro da Europa.
Influenciou veementemente os seus “alunos” a criarem uma guerra, invadiriam primeiramente o leste europeu, assim alguns países se manifestariam; tudo isso em nome da revolução, teria que haver o fim da cultura ocidental, a Europa era impura, não estava nos planos do deus infernal o ato falho desta missão.
Havia um verso que Anton havia feito, esse verso era recitado a cada vez que uma morte era presenciada:

A pureza está sendo feita,
Os impuros hão de morrer,
A Europa será liberta
Havendo um novo amanhecer.

A pureza está sendo feita,
Os impuros hão de morrer,
A Europa será liberta
Havendo um novo renascer.

Esse era o meio de comemoração, quando dava três horas da manhã havia um ritual com o sangue dos “impuros” que estavam jogados no chão, esse ritual era chamado de Justiçamento, eles se satisfaziam com a morte e a viam como um renascimento.
A partir deste momento iniciou-se a sangrenta guerra do Pacto com o Diabo, seus idealizadores achavam que dizimando inocentes iriam ganhar algo em riquezas pessoais e espirituais com o mentor da maldade, eles gostavam de executar as pessoas com músicas oriundas da magia negra, assim entrariam em ascensão.
Vendo tudo isto, de seus olhos voltou-se o reflexo a um imenso espelho de uma sala vazia, José via-se em milhões de minipedaços, mexia-se e seu reflexo ficava parado, a sala escura continha uma névoa esbranquiçada com a negrura da ilusão, ao mesmo tempo havia um relógio que girava lentamente.
Em sua mente havia a psicose, ele via-se ainda mais preso, e estando mais velho via as lembranças do que já havia se passado; via que estava só, isolado sem ninguém que amava, tudo apenas tinha se resumido em pó e saudade para seu coração, num pedaço de papel escrevia para ninguém, apenas para si mesmo, e com uma frase curta: Para aliviar a dor deixo a vida, tenho consciência que perdi.
Então, olhou-se no espelho das águas que se banhava em sangue, e viu o esboço de Anton, com a última frase da cantiga que ouvira há anos; lembrouse da última parte da macabra música:

Bem-vindo ao seu novo lar,
A morte te alcançou, Prepara-te para o ensaio
Do teatro do formoso horror.

E então percebeu que havia chegado a hora, a faca lhe ultrapassou o estômago e enquanto agonizava no chão, enquanto a janela dos seus olhos iam fechando, viu a imagem das pessoas que ele amava: seus pais, sua irmã e Ágata; finalmente fecharam e os últimos batimentos eram ouvidos, a respiração parou, e tudo estava fora de sentido, não restava mais ninguém no vilarejo, e a furiosa onda do mar cobriu tudo, e nada sobrou, tudo tinha desaparecido.
José assustou-se com um barulho muito alto, e o dia estava amanhecendo, percebera que um pássaro teria batido em sua janela e estava a morrer no chão de seu quarto, sua irmã deu um estrondoso grito e acabara de passar por um pesadelo. Disse ela que tudo estava escuro, que ela estava andando em uma densa floresta, e parecia ser perseguida por um homem muito alto, e que dizia umas frases sinistras, mas ele as repetia lentamente e acelerava com uma voz mais grave, era tipo:

Descobriste um novo mundo,
Chamaste por mim à noite,
Alimento-me de teu medo
E sobrevivo de toda morte.

Isso se repetia muitas vezes em lugares diferentes, na floresta, no deserto, no oceano, nas ruas do vilarejo, até na própria casa, e sempre ele corria e quando chegava perto dela, o lugar mudava.
Era um pesadelo que parecia muito real, Mariana não deveria sentir medo, pois assim daria mais munição para o mal. A porta da casa batia fortemente, e os dois foram ver quem estava lá embaixo, quando chegaram, um senhor de barba branca, bem vestido e com cerca de cinquenta anos estava desesperado, disse que era pai de Ágata e que ela estava chamando por José.
Era algo urgente, o velho homem disse que explicaria tudo no caminho, e explicou com as seguintes palavras:
— Minha filha sofreu um ataque ontem à noite, chegamos ao quarto e ela estava levitando na cama com um olhar sombrio, estava gritando muito, conseguimos colocá-la de volta na cama e percebemos que suas costas estavam arranhadas, seu corpo estava totalmente curvado, e de repente ela começou a falar uma língua que se assemelhava com o Polonês, língua falada pelos meus avós e seus antepassados; era sua segunda língua, ela disse:
Wezmę twoją duszę, que pode ser traduzido Levarei sua alma; é algo incomum, pois nunca lhe ensinamos a falar Polonês, acreditamos ser uma obra maligna.
Meu pai havia me falado certa vez da existência de um tal Anton Satanis, mas ele não me explicou tanto, e disse que era para minha segurança. A única coisa que sei é que esse cara se denominava o servo do diabo e teria feito com que milhões de pessoas morressem, sendo esse o motivo desta ilha ser habitada há cerca de duzentos anos; não sei mais o que aconteceu, mas ela pediu para que eu te chamasse urgentemente, pois Anton estava lhe perseguindo, estava colocando muitas imagens em sua cabeça. Ela pede que você a ajude, ela sabia do perigo que corria ao procurar sua história, meu pai me alertou muito cedo por isso, mas não me disse o porquê; eu sempre protegi minha filha, mas confesso que estou aterrorizado, não sei aonde devo levá-la para ajuda, não entendo dessas coisas, mas faço a vontade dela, por isso fui procurar-lhe; nós temos que resolver isto, dois jovens amanheceram mortos, e o enterro deles será hoje às três da tarde. Ninguém sabe o que os levou ao suicídio, e nem às cartas que deixaram com as mesmas palavras: Para aliviar a dor deixo a vida, tenho consciência que perdi; é algo inédito para este vilarejo, e realmente tenho medo que a próxima vítima disso seja a minha filha.
Andaram alguns instantes e chegaram à casa que ficava perto do mar, era uma casa meio clássica, estilo das antigas casas portuguesas, o piso era sublime e cuidadosamente polido, a casa tinha três andares e tinha várias passagens secretas (ao menos era o que parecia).
José aproximou-se lentamente da grande porta escura, e o pai de Ágata iria deixá-los a sós; quando José entrou ela estava com o olhar meio virado para cima e estava dizendo: Saia daqui; ao perceber que José estava ali, mudou totalmente o semblante que lhe cobria o rosto: estava com marcas nos olhos que denotavam que a mesma não teria dormido à noite.

 
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