No pequeno vilarejo da tempestuosa e fria Diamantina, existia uma família de camponeses, a família Apólito, família esta que seguia à risca várias regras que foram passadas de geração para geração, regras muito rígidas, regras calcadas num atônito e sublime propósito de elevar a vida na terra, de tornar as pessoas desta família imunes a todo tipo de dor ou descaso.
O vilarejo contava com cerca de três mil habitantes, era rodeado de areia, com pequenos mercados, tudo muito rústico, a maioria das casas tinham um acabamento de madeira, e contornando a pequena vila (cuja peculiaridade era que não podia crescer, pois era uma ilha) tinham inúmeras praias; as pessoas sobreviviam da pesca e um pouco da agricultura de um pequeno espaço que tinha campos e florestas.
O lugar é muito bonito, mágico, alguns habitantes passam por dificuldades, mas são ajudados instantaneamente pelos vizinhos. Neste lugar não pisava ninguém, estava situado em algum lugar muito distante, os antigos diziam que há cinquenta anos um navio havia naufragado ali nas proximidades, apenas oitocentas pessoas haviam sobrevivido pois haviam encontrado esta ilha; a partir daí ninguém conseguiu encontrá-las, e por aqui construíram suas casas e conseguiram viver em uma pequena comunidade.
Tudo indica que vieram de Portugal, é por isso que a língua oficial da ilha é o português e, portanto, muitos foram ensinados desde pequenos os costumes da civilização ocidental; existiam pequenos grupos de estudos, mas não existiam tantos livros. Aliás, para onde poderiam ir? Nos quatro cantos onde poderia haver uma saída existia um infinito mar, furioso e triste.
A família Apólito estava nas partes camponesas da ilha, trabalhava na pouca agricultura que tinha, colhia os frutos de seus trabalhos. O chefe da família, o senhor Estevão Apólito era um senhor já vivido, tinha muitas histórias para contar e muitos ensinamentos; tinha cabelos grisalhos e barba malfeita, mantinha a forma, era alto e usava roupas rasgadas e sujas, e nem se importava em fabricar suas próprias roupas.
A mulher de Estevão, Margarida Apólito, já tinha mais ou menos sua idade, cerca de cinquenta anos. Era uma mulher batalhadora, e cuidava da casa enquanto o marido ia trabalhar; cuidava muito bem das crianças. A casa onde a família morava era feita de madeira, mas era muito bonita e bem conservada. Eles não passavam fome, desfrutavam de uma bela paisagem, visto que além da vila ser rodeada pelo oceano, o lugar onde estavam (rodeado de árvores e vegetação) tinha um pequeno lago de água cristalina.
Eles usavam a água deste lago para a higiene pessoal, e por mais que vivessem muito distante da cidade (algo incerto para eles, pois não sabiam o que existia além do oceano), tinham uma vida muito boa; o casal tinha dois filhos: o José e a Mariana Apólito. Eram gêmeos e tinham cabelo castanho escuro, olhos castanho-claros e quatorze anos de idade.
A família Apólito tinha uma antiga vitrola e uns discos que eram passados de geração em geração, escutavam muito música clássica, e tinham uma ideia de como era a cidade, pois os antepassados lhes contaram detalhes de como era a vida fora dali; somente os primeiros habitantes da ilha viveram uma realidade diferente. Muitos tentaram atravessar o oceano para ver o que tinha além, mas aconteceram várias coisas estranhas, o mar pode estar calmo como for, parece que tem vida e não deixa ninguém sair dali.
Há cinco anos, Adoniran Coelho tentara fazer uma grande embarcação para testes, mas quando entrou no mar sentiu alguma coisa diferente, era como se algo estivesse falando para ele sair dali. Estava a uma distância de quinhentos metros da praia mais próxima das bordas da ilha, e ele conseguiu de alguma forma voltar. Disse ter alguma presença ruim no mar, que algo puxa para baixo de maneira violenta e diz para sair dali, parece que há uma vida ali.
Passaram-se dois dias e ele foi encontrado morto em sua casa, e uma carta alegando suicídio. Tinha um detalhe: apenas os adultos sabiam daquilo, eles esconderam das crianças para possivelmente protegê-las. Estavam receosos de tentar novamente, mas tinham demasiada curiosidade sobre a vasta incerteza, aquela que era praticamente impossível de ser descoberta. Nenhum tipo de embarcação se aproximava, parecia que a ilha era invisível.
O tempo ia passando, as pessoas iam envelhecendo em dúvidas. Crescia vertiginosamente a vontade de mudar, o vilarejo era comandado por uma espécie de prefeito (que não recebia dinheiro algum); passava pela votação das pessoas, e acontecia de cinco em cinco anos, algo totalmente diferente.
José Apólito crescia e também criava dúvidas na mente, já com quinze anos queria atravessar o mar para saber o que tinha do outro lado, reverberava em sua mente diversas histórias que ouvia; em suas aulas a professora de história despertava seu interesse em ir mais além; certa vez ele tinha estudado sobre as grandes navegações e se perguntava por que ninguém teve a grande ideia de sair dali… o ambiente estava cada vez mais diferente em sua mente, e apenas da imaginação restava-lhe os retalhos do cerceamento de suas eternas, porém amargas dúvidas, até mesmo as que soavam sua existência.
De repente traçava de seus olhos uma linha infinita que entregava a miragem na qual ele defenestrava seu incólume zumbido lacrimoso, caminhava no perene soluço da escadaria sublime, e desaguava na cidade que via nas capas de seus sonhos.
Nos detalhes e na rigidez da manhã, sentava no esboço de um espelho que se formava das águas, e do véu de um banho soava seus primeiros passos da rotina do dia. Era possível ouvir a voz da mata, dos pássaros regendo a sinfonia de sua perfeição, regendo a respiração da eternidade na distante terra onde ninguém mais pisara.
E dos ecos das folhas que caem nos campos surge a esbelta chuva, as nuvens ficaram carregadas, mais uma aurora seria infestada pela solidão da chuva, e José continua olhando as árvores balançando lentamente; quando de repente vê uma sombra bem distante, que com o soar do vento, desaparece.
Ignorou aquilo e continuou pensando, aproximouse dele Mariana, e perguntou-lhe se estava bem. Eles raramente conversavam, então ele disse-lhe o que estava sentindo, desabafou e impetuosamente lançou uma pergunta: você nunca parou para se perguntar sobre o que tem do outro lado?
Ela ficou um pouco em silêncio, e disse-lhe que sim, mas que não pensava nisso a todo o instante, também disse que no grupo da escola suas amigas têm este tipo de conversa também; elas ficam se perguntando sobre esse desconhecido mundo que está lá fora. A essa altura, todos os adolescentes já sabiam sobre a história de Adoniran Coelho, alguns até diziam ouvir algumas vozes pertos da casa onde o mesmo morava, mas era boato, e ninguém tinha certeza.
Todos tinham medo, e apesar de parecer ser perfeito morar em um lugar cercado de praia, a maioria tinha medo de aproximar-se ainda mais do oceano; fora que existiam muitas casas remotas ali, casas que foram abandonadas. Provavelmente eram casas de pessoas que morreram sozinhas, sem família nenhuma.
Na verdade, José era um jovem isolado, era muito esquisito, e muitos tinham medo dele; era misterioso e totalmente fechado, raramente conversava com sua irmã, mas naquele momento estava precisando desabafar com alguém, estava realmente apetecendo de meios para tirar suas dúvidas, ou compartilhá-las.
Ele também gostava de músicas clássicas, os noturnos de Chopin lhe agradavam muito; o rapaz também gostaria de tocar piano, mas no local onde morava existia apenas violão. Este era um pouco de seu íntimo, seu ponto de vista acerca do mundo era muito pequeno, assim como das demais pessoas, pois ele só conhecia esta realidade, era só aquilo que ele passava dia após dia.
Ele teria de buscar mais informações no decorrer do tempo, e para isso, apenas deveria estudar um pouco sobre a vida de Adoniran, e teria de entender o porquê de ele ter morrido só, sem nenhuma família, e sem ninguém para conversar, e o que o teria levado a cometer o triste e cruel suicídio.
Ele imaginou tudo isto, e sua irmã estava contando, ainda, os detalhes do que conversava com suas amigas, então José percebeu que teria imaginado tudo aquilo em fração de segundos, e começou a ter a primeira base do que é uma ideia.
Então ele levantou-se de onde estava e caminhou para fazer a primeira refeição do dia, a família pouco falava. Aliás, nem tinha sobre o que conversar. O pai estava cada vez mais cansado e desgastado, mas mantinha-se firme no trabalho com a ajuda do filho, e a mãe fazia os serviços domésticos com a ajuda da filha.
Ainda não se tinha aquela chama da adolescência por parte dos dois, eles não namoravam e ainda nem sentiam vontade; geralmente naquela comunidade eles se interessavam nos relacionamentos a partir dos vinte anos, raramente alguém se apaixonava na época da adolescência.
Não se tinha um aprofundamento acerca do que era o cavalheirismo, mas os homens sabiam que as mulheres são delicadas, que algumas são como flores, e outras, como espinhos; eles não faziam tantas coisas como estamos acostumado a ver nos grandes clássicos da literatura, mas sabiam o básico: que a mulher era o complemento do homem, a outra metade.
Não se sabia também muita coisa sobre o amor, geralmente quando o mesmo sondava pelo peito, muitas pessoas nem sabiam o que fazer, e se fosse recíproco, os dois ficariam ainda mais perdidos no cálice da chama de seus atos; não se tinha ideia sobre essas coisas simples, os pais tinham vergonha e cuidado na conversa sobre determinados temas mais delicados.
Era assim que viviam, envelheciam e morriam. Geralmente os filhos saíam de suas casas às oito horas da manhã na época das aulas, os estudos acabavam às duas da tarde e os jovens tinham a tolerância de ficar até as quatro horas da tarde com seus amigos, fazendo algo para passar o tempo.

 
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