No silêncio da madrugada, num sopro um tanto invisível dentre
as estrelas que flutuavam nos céus, havia nas cinzas das nuvens
uma poeira que rabiscava um espelho, que no soluço da chuva
reverberava nas rochas um tremor da tempestade que estava por
vir. Os pássaros e demais seres vivos estavam acoplados nos
oceanos de suas mentes e temiam uma incógnita para o fim de
suas vidas, metaforizada na tempestade que chegara há
segundos.
Uma mensagem por meio de uma energia trouxe ao mundo
uma nova forma de compreender a conexão entre os seres, e
nessas misturas as concepções da vida surgiram, George se
interessava pelo estudo do universo, da cultura, das artes, da
história, da filosofia; sempre que possível inventava em sua
mente um universo paralelo para escapar da realidade, observara
há tempos que não se encaixava com o padrão, segundo ele, de
jovens medíocres, superficiais, que somente formam grupos para
obedecer a um comando que padroniza a todos um estilo
robótico, tirando-lhes a essência. Ao caminhar nas nuvens, vira
que havia algo não fazia sentido, que por mais que ele
permanecesse ignorando não sairia de sua cabeça tão fácil.
A virtuose sondava-lhe a visão, porém ele não acreditava em
qualquer utopia, eis o fato de ser tão diferente entre as pessoas
de sua idade; ao chegar à esquina de seu pensamento, George
se encontrava em um castelo medieval, com subentradas para
diversas histórias, finalizava perdido em uma ilha conversando
com um leão e construindo algum barco para voltar para casa, o
oceano estava muito agitado, e por vezes não se afogara, não
porque as águas cobriam-lhe o corpo, mas pelo medo que ele
tinha de cair, fracassar e acabar esquecido, incompreendido e
estraçalhado pela própria ignorância, ou talvez pela imaturidade
de não compreender o destino de seu barco.
Soube ele que na cidade ao lado houvera algo inédito: parecia
que os bichos tinham expulsado o dono de uma fazenda e viviam
agora sob a tutela de um porco, George tentara imaginar como
pudera acontecer algo tão fantasioso, mas veio um condor à sua
janela e lhe contou toda a história, resumindo-se na frase absurda
de quem mais “pensara” no bem-estar dos companheiros: todos
são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. Sob a ótica
do animalismo, o mundo seria muito mais desigual e sangrento,
isso inspirou George a testar o seu cachorro Winston, porém nada
disse por desprezo a esta realidade e um silêncio abissal titubeou
a curiosidade, esse cachorro era mais inteligente que muitos que
acreditavam nas fantasias!
Winston era de uma espécie rara, era alto e com certeza o
melhor amigo de George. Ao andar pelo obscuro da casa,
encontrou nos fundos um pedaço velho de papel e levou ao seu
amigo humano, que logo esboçou em seu rosto uma emoção;
tratava-se de um escrito que lhe chamara atenção pelo alto grau
de complexidade:
Acorde-me desta aflição quando o outono
Abrir a fronteira das flores que estavam mudas,
Quando a chuva inundar a alma dos moinhos
Da tempestade que destruiu o segundo em que
Meus olhos enxergariam as cores do ódio.
O que fazer diante de palavras tão enigmáticas? Talvez a
tempestade que chegara há segundos tenha alguma coisa a ver,
ou o sentido de tudo está baseado em um eterno por quê. George
conversava com Winston por não ter outra pessoa que o
entendesse, talvez Winston fosse apenas a sua imaginação.
Derradeira era cada passagem de conhecimento que George
obtinha em seus estudos por meio da solidão e do silêncio de seu
quarto, com suas paredes cavernosas e escuras, onde seus
pensamentos fluíam e dedicavam odes ao que mais havia de
bonito no universo; quer seja na área da literatura, quer seja na
área musical, porém George não conseguia escrever, lia diversos
poemas, conseguia interpretá-los, mas não fazia algo que desse
para se chamar de poema.
Este papel que estava sobre a sua mesa de madeira rústica
traduzia boa parte da vida do jovem, que com apenas catorze
anos sonha em ser escritor, poeta e filósofo, certo de que não
importa as dificuldades que a vida irá trazer, não importa quão o
oceano esteja agitado, não importa, aprendeu isto com seus pais
antes de serem assassinados pelo regime de opressão que
primeiros os tomou as armas, depois a comida, e antes de George
sofrer as consequências, sua mãe o colocou em uma caixa num
embarque para bem longe dali, porém subitamente ele foi parar
em uma floresta com animais ferozes, dentre eles um leão que
cuidou dele até os sete anos.
A partir dos sete anos George lutou sozinho e conseguiu uma
carona em um metrô para uma cidade desconhecida onde ele
passou por várias dificuldades, morando na rua, com fome e
juntando no lixo alguns livros para ler (isto mesmo, o leão
juntamente com sua família alfabetizou o menino). Aos dez anos
conseguiu encontrar uma casa abandonada na Rua Infinite
Highway (na encruzilhada com um abismo), casa essa onde está
agora, olhando pela janela o movimento de almas vagando
naquele sertão urbano, naquela tarde nebulosa, com a chuva
caindo lentamente nas gramas do jardim que ele não tinha.
Relembrando do aprendizado que teve ao entrar em contato com
a história de seus pais, abraçara Winston e chorara em uma
agonia, que se transportada a uma música clássica, nenhum
Réquiem chegaria perto de tanto sentimento.
Por incrível que pareça, George não punha a culpa de seus
fracassos em quem era bem-sucedido, já conseguira parar de ver
apenas os reflexos e ousou sair da caverna, no centro da
cidadezinha de Pedras conseguiu um pequeno emprego em uma
loja com artigos medievais, assunto para ele, indispensável tendo
em vista a base da civilização ocidental, como todo bom
conservador, George acreditava que hão de conservar-se o que
há de bom e consertar-se o que há de mau. Seu chefe, o senhor
Beethoven, o ajudara financeiramente, com alguns alimentos,
roupas e um salário semanal de trezentos dólares. George pouco
saía para festas, sentia-se em uma guerra cultural onde o
principal objetivo era destruir as bases da civilização ocidental,
sendo assim, mais fácil a explicação das inversões de valores,
um pensamento de inveja e ódio a quem mais produz, lembrando
exclusivamente do que ocorrera na fazenda, na cidade vizinha.
George era excluído em sua escola, e já com quinze anos
começara a preparar-se para a faculdade, discutia com todos que
ousassem tentar incutir na mente das pessoas suas ideias cruéis
por meio de palavras bonitas, de sofismas baratos, e isso o fazia
ser chato e para muitos, um velho. Vivia viajando em seus
próprios pensamentos e maquiando algumas dificuldades pelas
quais ainda passava, mas adotara uma velha máxima (um
dilema): as coisas boas hão de serem superiores às ruins, e isso
se repetia constantemente nos dias mais difíceis.
Na biblioteca municipal de sua cidade, George se esbaldava
na leitura de livros de todos os temas, inclusive até sua vida
parecia uma ficção, uma vez ele conseguiu encontrar um livro que
o inspirou ainda mais a enveredar no caminho da literatura,
tratava-se de um livro de poesias de um autor com um
pseudônimo: Sir Cavalcanti, com a obra Muito além das
palavras, eis a poesia inicial:

FÜR BLUME

Estás a olhar-me no polor da armadilha,
Alçando-me o peito do fragor acachapante,
A tez dos teus olhos, a acácia mais errante,
O ósculo perfeito, indolor que exaspera a lira.

Das perfídias cáusticas do teu riso,
A prole da tempestade vigente no esboço;
No rosto refletido no espelho o resquício
Dos tempos em que meu verso a ti era posto.

As lágrimas da chuva secam teus olhos escuros,
A aurora da madrugada leva-me ao pensamento,
E dele, resgata teu desejo do abismo mais puro.

Ouves levemente a voz cálida de minh’alma
Confortando-te a agonia desta noite sem vida:
Encontrar-nos-emos um dia, em paz, no silêncio.

Sir. Cavalcanti, Inglaterra, 1909.

Lendo esta poesia inicial, os olhos de George começaram a
desmoronar, e uma ideia surgira bem no fundo de sua alma,
quase intercalando entre a razão e a emoção. Este soneto
representava muito bem as palavras não ditas por George, até a
maneira de escrever, o título PARA A FLOR o deixou com uma
dúvida imensa: Quem será a moça que despertara este desejo
tão sublime no autor?
George levou até Beethoven este poema, e perguntou-lhe:
— Conhece este poema, senhor Beethoven?
Beethoven, um pouco assustado, concomitante às
lembranças, disse:
— Sim, eu declamei a minha querida e falecida Jane…
Surpreso, George indagou:
— Quem é Jane?
Vagamente, o senhor Beethoven com os olhos permeados
pela saudade, respondeu-lhe:
— A minha esposa, a amei intensamente. Eu servi à KGB,
passei pelo processo de Dezinformatsiya, presenciei a necrofagia
política, nada podia fazer, mesmo sabendo que estava sendo
cúmplice pela morte de milhões de pessoas na tirania soviética,
estava acorrentado pela cortina de sangue. Um dia, infiltrado para
colher informações da CIA nos EUA, conheci Jane, uma bela
americana. Ela era loira, com cabelos lisos e longos, lábios
macios, corpo exuberante, mas algo me chamava muito mais
atenção: os seus olhos, apesar de verde-azulados eram como o
azul dos céus, tão profundos quanto o oceano, quanto qualquer
abismo. Depois que nos casamos, consegui cidadania
americana, e aconteceu uma tragédia. Descobriram meu
paradeiro, e quando eu não estava em casa (estava viajando a
trabalho para Washington) os agentes soviéticos entraram em
minha casa e assassinaram minha esposa. Nosso casamento
durou seis meses e ela estava grávida, desde lá não consegui ter
mulher, nem filhos…
George ficou parado por cinco minutos, sem saber o que falar,
com as pernas trêmulas, imaginando toda a situação, e só
conseguiu fazer uma única pergunta:

— Como o senhor veio parar aqui na Inglaterra?

Ele tremeu-se, e preocupado, respondeu:
— Segredo da velha guarda.

 
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